10.10.05

Descendência - a short story

Este é mais um dos contos curtos que tenho criado recentemente...

- Irra, que já era demais!
Quando informaram Don Ignazio Felipe de Monasteros Rubicalde y Vega de Torquemada da recente conversão do seu 12º filho ao Budismo e consequente retiro ascético no Butão, este não se conteve e alterou a habitual fleuma e bonomia que caracterizam aqueles cujas posses e bens desafiam qualquer vã tentativa de quantificação ou avaliação contabilística ou mesmo pura e simples enumeração de todos os bens adquiridos, apropriados, recebidos, roubados, espoliados, obtidos através da força bruta, por outros processos menos lícitos ou modos de actuação que irão estar por explicar durante décadas, ou talvez mesmo para sempre.
Mas o desespero de Don Ignazio focalizava-se apenas num único e só desígnio: o de encontrar um herdeiro à altura, um seu descendente que pudesse continuar a sua obra, que soubesse desempenhar eficazmente as funções de grande proprietário, administrando com pulso de ferro todo o seu legado, que lhe seguisse os passos, que tomasse as rédeas dos seus numerosos ranchos e herdades, com manadas de gado e plantações. E tudo isto em hectares e hectares a perder de vista, espalhados por um vasto território que ia desde o Novo México às Honduras, desde Guadalajara ao Panamá, dos Andes ao delta do Orenoco. É que os anos já lhe pesavam e iam-lhe faltando as forças para estalar o chicote que o tornara famoso e temido entre peones, empregados e demais rancheiros da região, pois aplicava a justiça e impunha a disciplina pelas próprias mãos, invariavelmente sob a forma de vergastadas nas costas dos desgraçados que ousassem contrariá-lo ou desobedecer-lhe.
Mas a escolha de um herdeiro esbarrava sempre nas inconvenientes características que apresentavam os diversos indivíduos que constituíam a sua imensa prole. Não que lhe faltasse por onde escolher, portanto, mas quanto mais voltas dava à cabeça menos saída encontrava para o problema.
Um dos outros filhos estaria algures na Europa, ao que parece vivendo de expedientes e negócios obscuros ligados à economia paralela, fazendo com frequência a ligação entre Amesterdão, Berna, Zurique e outras cidades, transportando substâncias psicotrópicas de teor ilícito na Suiça e outros países, mas perfeitamente legais nos Países-Baixos.
Um outro, para dar um exemplo, utilizara os rudimentos que as aulas de piano que fora forçado a ter quando criança lhe forneceram, (uma das manias da sua 3ª esposa, assassinada a mando de um cartel boliviano, como retaliação contra Don Ignazio), para se integrar, como teclista em diversas bandas punk-hard-rock-gótico-trance-techno-urbano-depressivas que pululavam a zona este de Los Angeles, Califórnia.
Um outro ainda, dedicara-se ao alpinismo e acabara por morrer gelado algures a meio da escalada da temível encosta norte do Anapurna, isto a fazer fé num sherpa, o único sobrevivente dessa malograda expedição.
E por aí fora, todos os seus filhos, sem excepção, evidenciavam particulariedades negativas de carácter, impeditivas para o desempenho da função em questão.
É claro, havia sempre a hipótese de legar o seu património a uma das filhas, mas encarava-a como remota, pois o seu arreigado machismo não lhe permitia aceitar uma fêmea à frente dos seus ranchos. Ironicamente, mesmo por aí, a escolha confinava-se entre desmioladas que se entregavam á sedução e engate de meninos ricos que passeavam toda a sua futilidade a bordo de dispendiosos e potentes descapotáveis pelas avenidas de Miami Beach ou Beverly Hills, e duas gémeas que se haviam devotado à vida monástica, ingressando num longínquo convento, o das Carmelitas Trepadoras, cuja povoação mais próxima, escassamente era digna desse nome, estava ausente de qualquer mapa e irremediavelmente perdida nos contrafortes da cordilheira dos Andes. O lado da descendência feminina não apresentava, portanto, qualquer solução viável e o panorama parecia cada vez mais negro ao grande proprietário, à medida que o tempo lhe escasseava.
Foi então que o ignóbil Don Ignazio, observando o fumo que saía das chaminés das cozinhas, se lembrou que os frutos das suas sementes não se limitavam apenas a crescer no pomar legalmente registado, mas também em árvores exteriores àquele, o que, traduzido por miúdos, queria dizer que também tinha bastardos. Existia precisamente um filho, seu e da cozinheira que há mais anos o servia, e todos o sabiam, embora não ousassem afirmá-lo com temor das consequências. Não o reconhecera como filho na época e bastardo continuara a ser, passados... quantos? uns vinte e tantos anos, seguramente, raciocinava Don Ignazio. Concluiu então ser ele a única hipótese para a sua sucessão, e restava informar-se do paradeiro do rapaz e demais pormenores, pelo que mandou chamar a cozinheira à sua presença.
Que sim, que estava vivo e de boa saúde, que bom moço se fizera, e que acabava nesse preciso ano, para grande orgulho de sua mãe, o curso universitário de Gestão Agrária, ou coisa semelhante, o que vinha mesmo a calhar. Nem de propósito. Foram incumbidos os seus advogados de legalizarem a paternidade do jovem e de o avisarem que era aguardado no final do semestre na herdade, para uma importante conversa sobre o seu futuro.
Recém-chegado do seu pequeno quarto do campus universitário da Cidade do México, foi levado sem mais detença à presença de Don Ignazio. Este não conseguiu evitar que transparecesse o espanto que lhe assomou o rosto, quando viu o rapaz entrar, pois era exactamente a sua figura, quando tinha aquela idade. Bom, meu filho é concerteza, pensou o latifundiário com um misto de alívio, ainda alguma incredulidade e uma pontinha de orgulho. É que nenhum dos seus outros filhos se lhe assemelhava tanto.
Tratou de inteirá-lo do seu propósito de o fazer principal herdeiro, lhe passar o testemunho da administração exclusiva da globalidade das suas propriedades e demais património acumulado.
Estupefacto, o jovem licenciado lá foi anuindo, a medo de início, mas progressivamente com crescente à-vontade, à medida que ia interiorizando o alcance e a real extensão da proposta que lhe apresentavam. Pelo lado de Don Ignazio, seria difícil imaginar uma situação que lhe agradasse mais. O rapaz, para além de ser a sua cara chapada, caíra-lhe no goto, pois adivinhava nele, se bem que embrionárias, características de liderança e determinação que o tinham transformado numa das pessoas mais ricas e poderosas da região, se bem que também uma das mais odiadas.
Foram tomadas as diligências necessárias para a transferência de poderes mesmo a tempo, pois a saúde de Don Ignazio só beneficiaria com o abrandamento dos inúmeros afazeres que diariamente o ocupavam.
Foi num desses dias, que após acordar, dirigindo-se à varanda da enorme mansão, reparou na soberba figura do seu herdeiro, montando um puro-sangue criado nas cavalariças da herdade. Dava ordens a uns trabalhadores que instalavam uma espécie de faixa de tela com inscrições, esticando-a entre as duas grandes árvores que ladeavam a entrada principal. Reentrando no quarto, buscou os seus binóculos para poder perceber melhor o que se passava. Pôde então ler o que estava escrito na faixa, agora totalmente esticada: COOPERATIVA AGRÍCOLA EMILIANO ... e invadiu-o uma fulgurante síncope cardíaca.
Conta quem viu, que a primeira pessoa a chegar junto do morto foi a cozinheira, que com um sorriso de satisfação sussurrou ao ouvido do cadáver: "pués... que Viva ZAPATA, Don Ignazio!!!". Rui Azul

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