Entrevista Jornal de Notícias 17/01/2005 p. Cultura
Entrevista-Rui Azul
FIZ UM PÉRIPLO POR PARAGENS EXÓTICAS
O músico Rui Azul está de regresso com novo disco, "À Bolina", uma incursão pelo etnojazz
Suão, Pequim, Magrehb são algumas das palavras que podemos ler nos títulos do novo trabalho discográfico de Rui Azul, "À Bolina", pistas que indicam de forma inequivoca o vento que o ajuda a navegar nestas suas viagens: o etnojazz. Ao fim de 30 anos de carreira é um músico muito seguro de si que nos revela o que é que o levou a tocar todos os 10 instrumentos que utilizou neste seu novo CD.
[Jornal de Notícias] Apesar de ser um músico de matriz jazzistica, sempre teve propensão, ainda que pouco libertada, para a música etnográfica. "À Bolina" é o projecto em que assume essa sua faceta?
[Rui Azul] Sim e não. Sim, porque quis fazer o tal périplo, uma circum-navegação aportando em diferentes, remotas e algo exóticas paragens ou escaIas disseminadas pela "world", o que trouxe uma certa coerência ao álbum. Não, porque não assumo nada sem a presença do meu advogado e, a avaliar pelos temas que já compus para o próximo registo, vai acontecer um redireccionamento, apontando para tipologias e estilos mais libertos das sonoridades étnicas. Em "À Bolina" são detectáveis componentes étnicos, ou etnojazz, mas também afinidades com outras estéticas, mesmo até minimal, como em certos loops de marimbas e balaphons que desfilam em background.
[JN] Pela primeira vez não recorre a outros músicos e decide tocar todos os instrumentos. Isso aconteceu por razões estéticas ou económicas?
[RA] A razão prende-se com o estado de frustração que me invadiu quando constatei, em finais de 2003, que as fitas nas bobinas em que gravara uma dúzia e tal de originais se encontravam deterioradas devido ao bolor e humidade. Esses temas destinavam-se a ser editados em cd, e continham a colaboração de vários convidados: Vítor Rua, Hélder Gonçalves, Rui Júnior, Raul Marques, Carlos Azevedo, Filipe Mendes, Pedro Taveira, Quiné, David Lacerda, Paulo Gomes, Miguel Megre, os Mareantes do Rio Douro, entre outros. Significavam seis anos de estúdio, de gravações, de contactos, de trabalho...inglório. Decidi então gravar rapidamente, em "home studio", por minha conta e risco, novos temas (os outros já me começavam a enfastiar...), de modo que tive necessidade de virar a página, pois formara-se um hiato considerável, desde a edição do meu disco anterior..
[JN] Também decidiu agora recorrer à voz, coisa que nunca tinha acontecido...
[RA] Sim, para além dos samples das vozes de Martin Luther King, John Kennedy, de uma cantora "soul" black, e de uma mulher e adolescente africanas, gravei a minha voz, num outro. Utilizando um dos sarcásticos poemas de Mário - Henrique Leiria ("Novos Contos do Gin") e sobre uma sequência quase minimalista de marimbas e vibrafones, decidi fazer de "diseur", entoando "A Família e o Esturjão".Processei a minha voz, baixando o "pitch" em um tom e meio, simulando um baritono, acrescentando ainda mais ironia ao tema.
[JN] As suas improvisações aqui são mais contidas, estendem-se muito menos do que quando toca exclusivamente jazz. O que levou a esta alteração de comportamento? Terá a ver com o facto de tocar todos os instrumentos?
[RA] Não me é muito fácil interpretar esse facto. Quando se refere comparativamente ao jazz, está a referir o mainstream, penso, porque considero que muito do que se pode ouvir neste disco é jazz, pois as fronteiras desta música são extremamente vastas. Penso que utilizo mais o silêncio, entrecortando o discurso melódico, como aconselhava Miles. Acho que está mais depurado, mais sentido e menos tecnicista. Outra das razões prende-se com a vontade de manter os temas mais curtos, pois tive que seleccionar de entre 24 temas que gravei. Tinha material para um triplo..
[JN] Não resistiu a incluir um tema eminentemente jazzistico, "Tea Gee", cheio de fluidos coltraneanos.
[RA] É verdade, estranhos são os sinuosos e inesperados caminhos da criatividade... Agora mais a sério, não me considero (e não me consideram) coltraneano. Associam-me habitualmente mais ao Sonny Rollins, que de facto me influenciou nos primeiros anos.
[JN] Para apresentar este disco ao vivo vais ter de elaborar muitas alterações?
[RA] Nem por isso. As alterações são só a nível das improvisações, sopros e de algumas sequências harmônicas, cujas pistas foram retiradas de modo a obter apenas uma espécie de secção rítmica simplificada, sobre a qual os músicos que me acompanharão irão tocar. Aumentei a duração de cada uma dessas bases dos temas, pois ao vivo os solos são mais extensos e em maior número, mesmo nos temas em que os solos individuais se transformam em diálogo, o que origina sempre ambientes interessantes e inusitados.
por Rui Branco - Jornal de Notícias de 17 Jan 2005 - pág. Cultura