21.10.05

GOSTO PELA PALAVRA - a short story

um dos primeiros contos curtos que tenho vindo a escrever, nos últimos meses...


- Pára de comer as palavras!
Dizia-lhe a professora com o enfado próprio de quem repete o mesmo diariamente e vezes sem conta.
- Alfredo, não se percebe nada daquilo que dizes! E amiúde, sua mãe desdobrava-se em desesperadas e quase patéticas tentativas de alterar a situação. Nada dera resultado. Era superior às suas próprias forças, e com o tempo, transformara-se numa notória forma de dependência.
Alfredo sempre gostara de saborear palavras, e já na primária apreciava o gosto dos ditongos, aprendera a degustar o travo das consoantes, transformando-se num verdadeiro gourmet, primeiro entre agudas e esdrúxulas, depois com advérbios, abordando mais tarde todos os pratos suculentos das polissilábicas, prosseguindo desenfreadamente pelos exóticos agridoces das línguas estrangeiras.
Coleccionava religiosamente enes com til, oós e uús dotados de trema, arrobas, símbolos geométricos, caracteres orientais e outras iguarias para ocasiões festivas, tais como o seu aniversário, o Natal, o dia-de-todos-os-santos, e para quando o seu primo que vivia em Newark os visitava, ano após ano. Gostava especialmente desse primo d'América, embora não fosse realmente seu familiar, pois ele era primo, ao que constava, de uma meia-irmã da sua mãe, que colocara sempre fortes dúvidas sobre a veracidade desse hipotético parentesco. A verdade é que todos o tratavam por "primo", pois também nunca chegaram a saber o seu nome próprio... A predilecção de Alfredo por ele vem do tempo em que o emigrante, apercebendo-se da tendência do rapaz para as letras, começou a trazer-lhe surpresas do outro lado do Atlântico: uma versão bilingue cambodjano-hindú do "Guerra e Paz", todos os exemplares desse ano do diário da comunidade portuguesa radicada em Newark, a lista telefónica do estado do Minnesota, para além de 14 mil folhetos promocionais de um stand de comercialização de alfaias agrícolas de New Jersey.
De início ninguém dera por nada, mas pouco depois de ter ingressado na escola, começaram a aparecer pedaços de papel semi roídos ou lambuzados debaixo dos móveis e dos almofadões do sofá. Os colegas da escola deram o toque final apelidando-o de Alfredo... Alfabeto.
Mas foi quando a sua irmã mais velha precisou de consultar o dicionário para um trabalho da disciplina de Português que o caso começou deveras a preocupá-los: toda a letra P, mais aquelas páginas de outra cor que são relativas às expressões em Latim, haviam desaparecido. É de assinalar a tendência, ainda em precoce idade, para linguagens e idiomas inusuais.
As queixas seguintes provieram de outro irmão de Alfredo que, com incredulidade estampada no rosto, comunicou à restante família que todos os balões, vinhetas e filacteras dos álbuns de banda desenhada que compunham a sua colecção do Tintin tinham sido meticulosamente recortados e extraídos das páginas das aventuras do intrépido repórter, seu cão Milou e seu amigo Capitão Haddock. Por certo este último personagem, nas alturas em que se enfurece, fornecia-lhe os balões mais saborosos, recheados de onomatopeias e símbolos universais que podem facilmente levar ao rubro os pavilhões auriculares duma qualquer freira mais puritana. Mas por falar em vociferações, injúrias e demais terminologia de calão, é necessário reconhecer que Alfredo recusava sistematicamente tocar em palavrões ordinários e outras expressões de baixo teor ético-social, de péssimo sabor, aliás, como ele próprio afirma numas gravações audio que deixou, à laia de memórias ( inicialmente tentou escrevê-las numa espécie de diário autobiográfico, mas acabou por mastigar as páginas à medida que as ia escrevendo...).
Mas desenganem-se se pensam que o consumo se confinava apenas à palavra escrita ou impressa. A expressão verbal foi também, desde cedo, uma das suas fortes adicções. Era frequente vê-lo, a meio das frases, produzir um som semelhante ao de um assobio, só que de fora para dentro, correspondendo ao sugar de um ou outro termo que, evidentemente, não chegava a pronunciar, ao que se seguia um sonoro estalar da língua contra o céu da boca, de pura satisfação. Foi aqui que o vício se voltou contra o viciado, pois enquanto se confinou à grafologia, ao stencil, offset, jacto de tinta, laser, carimbo, às máquinas de escrever, calculadoras, registadoras, enfim, aos caracteres impressos, não vinha mal de maior ao mundo ( à excepção dele próprio, como daquela vez em que tentou ingerir uns cubos de brincar com letras nas faces, o que lhe provocou uma violenta indigestão... ).
A desdita começou quando teve a infeliz ideia de querer provar as palavras directamente da boca das outras pessoas, enfurecendo colegas e familiares. Aproximava-se subrepticiamente quando proferiam algo, e rapidamente, quase encostando a sua boca à deles, aspirava sofregamente. E foi quando tentou esta manobra, numa pomposa cerimónia oficial, com o Presidente da República, que fez transbordar o copo de uma vez por todas. Foi preso, julgado e acusado de comportamento indecente e desviante, ofensas à moral pública e aos bons costumes, assédio sexual na pessoa de um governante, entre várias outras violações a diversos códigos. Mandaram vir os especialistas que o analisaram durante semanas a fio, voltando com o diagnóstico: esquizofrenia indutora de comportamento compulsivo incontrolável, em estado avançado.
Foi internado numa instituição estatal para doenças mentais e raras patologias, onde só lhe forneciam escassas doses de revistas mundanas tipo Hola, com mais de cinco anos sobre a data de tiragem, depois da prévia extracção de quaisquer letras, algarismos ou caracteres.
Nunca mais o vimos.
Lembrei-me de contar a sina de Alfredo porque li por acaso, um dia destes, no jornal, que surgiram dois casos semelhantes: um em Dar-Es-Salam e um outro na Patagónia.
Rui Azul

4 comments:

Leonor said...

ola rui. fico sempre curiosa quando me aparece um visitante novo.
mandaste-me vir ca. nao era preciso. eu viria na mesma. andei a vasculhar no teu sitio. encontrei este conto. short story, rss.

belissimo. muito bem escrito. muito bem imaginado.

abraço da leonoreta

Ivana said...

Vai acompanhar-me agora durante o dia, esta short story.

Nestas coisas da loucura, nem sempre o que parece é... Igualmente triste, são aquelas pessoas que desperdiçam palavras ou as atiram de forma grotesta para quem as ouve.

As palavras são de pedra, já dizia Vergílio Ferreira...

Anonymous said...

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Anonymous said...

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