30.3.06

Pirata do Ar (short story)

Aí fica o meu mais recente conto (curto). Fiquem à vontade para comentar, se for caso disso, é claro...


«- Alto! Que ninguém se arme em esperto, se não quer ir desta para melhor! Ei! Tu aí! Sim, tu de boné e farda, trata de mudar a rota e o destino e vamos rumo ao aeroporto de Trípoli, na Líbia! Já!!»
Todos os passageiros abriram as bocas de estupefacção, e fizeram-no com tal sincronismo que mais dava a ideia de o terem ensaiado até à perfeição. Com um ar completamente aparvalhado, o tal de boné e farda ainda esboçou um tímido:
«-Mas, mas...»
«-Nem mas, nem meio mas! Isto é um sequestro e aviso pela última vez que corto as goelas àquele que não colaborar. Tudo quieto e calado!» - berrou o assaltante, enquanto algumas gotas de suor lhe escorriam pela cara, patenteando o seu estado de extremo nervosismo. Vestia um blusão verde tropa, com uma pequena bandeira tricolor alemã num dos ombros, do género daqueles que os freaks e esquerdistas usavam muito nos anos 70. Uns jeans muito coçados, botas da tropa, um lenço árabe à Al Fatah e para rematar, um intimidador facalhão de mato com uma serrilha bem capaz de cortar uma das pernas a um piano de cauda. Ah! e os inevitáveis óculos escuros, claro. Enfim, o género de indumentária que inexoravelmente alertaria a segurança de qualquer aeroporto que se preze, mas o facto é que não foi aquilo que se passou.
«-Mas o treino que... que me deram não in...cluiu... não previu... assim... percursos desse tipo...» gaguejando, ainda se lamentou o tal do boné e farda, tremendo que nem varas verdes e agarrando-se ao manípulo com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.
«-Bah! Desenrasca-te de qualquer jeito! Se for preciso reabastecer, paramos pelo caminho. Se recusarem a dar-nos combustível, aposto que mudam logo de ideias quando começar a atirar-lhes com um cadáver dum passageiro de dez em dez minutos!».
Uma senhora no extremo oposto do compartimento, que vinha já dando sinais crescentes de poder iniciar um ataque de histeria a qualquer momento, apesar dos esforços do marido, que a seu lado tentava desesperadamente acalmá-la, não se conteve mais e soltou um grito agudíssimo. O som foi prontamente abafado pela mão do não menos aterrorizado esposo, que sem se aperceber continuava a exercer tal pressão sobre a boca e o nariz da pobre mulher que o rosto desta começava a mudar de cor devido à gradual asfixia...
«-Páre, seu idiota!!» disse o sequestrador, dando conta do que sucedia «-Ainda acaba por matá-la e o único que o pode fazer aqui sou eu, e mais ninguém! Entendido?» completou, cuspindo ostensiva, grosseira e sonoramente para o chão.
Completamente a despropósito, veio-me à ideia naquele momento se o facto de os jogadores de futebol estarem constantemente a cuspir para o relvado não teria uma certa quota parte de responsabilidade nessa prática insalubre que se observa um pouco por todo lado, quase exclusivamente por parte da população masculina. Lembrei-me então de uma antiga namorada minha, que abominava positivamente presenciar tal espectáculo, chegando mesmo a interpelar e admoestar o responsável por tal acto hediondo, isto em plena via pública, o que quase nos trouxe dissabores, uma vez por outra, porque os machos latinos não gostam de críticas, pois sabe-se lá porque carga de água, acham que essa tal prática lhes confere uma postura de pretensa... "virilidade". É que há cretinos para todos os gostos...
Enquanto estes pensamentos estranhos e totalmente fora de contexto me assolavam o espírito, dei-me conta que alguém, sem que o assaltante notasse, conseguira efectuar uma chamada por telemóvel. Mantive a secreta esperança que a ligação efectuada não se destinasse apenas a avisar a respectiva mulher que concerteza iria chegar tarde para o jantar...
Quase de imediato, parecendo pressentir uma tal eventualidade, o "pirata" ordenou que todos os passageiros lhe entregassem os telemóveis, carteiras e outros objectos de valor, para o que desatou o lenço que trazia ao pescoço e o transformou numa espécie de saco para conter o saque acumulado.
«-E agora ponha isto a andar, rápido!». Passados instantes, começamos a subir. Ninguém se pronunciava, com medo de represálias, e apenas se ouvia o abafado ronronar do motor. Largos minutos mais tarde, sentimos um estremeção.
«-Que se passa?» gritou, empunhando ameaçadoramente o facalhão.
«-Não podemos subir mais...» respondeu o do boné.
«-Então mantenha-se a esta altitude.». Pelo canto do olho reparei que o careca a meu lado rezava, baixinho. De súbito, do interior do saco-lenço, um dos telemóveis rasgou o pesado e tenso ambiente, uma vez..., outra..., outra ainda...
«-Que raio?... 'Tou?!!» vociferou o assaltante, descobrindo por fim qual o telemóvel que tocava de um modo irritante, a melodia da..."lambada"
«-Ai sim? Sim, 'tou a ver... ainda bem... mas foi mesmo o coronel que mandou? Emissários especiais? Ok, ok, não, tudo bem...claro que sim, vamos aterrar,...quê? Sim, sim, não sei ao certo...», e virando-se para o homem fardado, despejou: «-Desça esta porra! Chegamos a Tripoli!!»
«-Sim, senhor, é para já...».
Iniciamos a lenta descida, e no ar pairava um ambiente de incerteza quanto ao desfecho de toda aquela situação. Quando finalmente nos detivemos, cá em baixo, as portas abriram-se de súbito e dois tipos avantajados envergando camuflados e lenços árabes dirigiram-se ao sequestrador tratando-o por irmão, enquanto soltavam vivas e desejavam longa vida ao coronel Khadaffi.
Num ápice, envolveram o "pirata" nos seus braços que mais pareciam troncos de árvore, retiraram-lhe a faca e o saco das mãos, aplicaram-lhe uma mordaça e enfiaram-no numa camisa de forças! Tão rápido que dava vontade de rebobinar e passar em câmara lenta, se na vida real pudéssemos dispor de tal recurso, para melhor observar certos momentos fugazes, como era o caso.
Retiraram então os lenços da cabeça, e ao despirem os casacos de camuflado pudemos verificar que por baixo envergavam batas brancas. Devolveram todos os pertences aos respectivos proprietários, e após nos desejarem a continuação de um bom dia, afastaram-se pelo vasto hall de entrada do enorme edifício, carregando pelo ar o sequestrador, que se debalde se debatia, esperneando furiosamente.
Todos felicitaram o ascensorista por, apesar de tudo, ter mantido algum sangue frio perante a situação, e quando finalmente abandonávamos o espaçoso elevador que servia os 80 e tal andares do arranha-céus, alguém comentou:
«-Vá lá, nem acabou mal... na semana passada, o meu cunhado aleijou-se mesmo, quando tentou fazer frente a outro doido destes, que raptou toda a gente que durante o intervalo estava nas casas de banho do cinema, pensando que estava a sequestrar o TGV Berlim-Paris...».

Rui Azul

1 comment:

Anonymous said...

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