25.12.05


Monk
nanquim s/ cartolina

Dizzy
pastel s/ cartolina

29.10.05

21.10.05

I HAVE A DREAM por Rui Azul

Reprodução duma obra plástica sob a forma de uma banda desenhada de grande dimensão (180x100 cm) que esteve exposta na XIII Bienal de Arte de V.N. Cerveira, sendo acompanhada de uma banda sonora original ( tema: "Globalize Human Rights", 3ª faixa do CD "À BOLINA" de Rui Azul ), podendo ser "downloadada" - perdoem-me o neologismo - a partir dos links que se encontram na coluna à direita.



"A livre comunicação das opiniões e dos pensamentos é um dos direitos mais preciosos do homem; todo o cidadão pode então falar, escrever, imprimir livremente; ..."
artigo XI da Declaração Universal dos Direitos do Homem


"I have a dream that my four children will one day live in a nation where they will not be judged by the color of their skin but by the content of their character; ..."
Martin Luther King


"Even though states have the primary responsability to promote and protect Human Rights, transnational corporations and other business enterprises, as organs of society, are also responsible for promoting and securing the Human Rights set forth in the Universal Declaration of Human Rights."
World Social Forum in Porto Alegre and World Economic Forum in Davos - Jan 03

"A special emphasis should be given to education designed to make women aware of their rights and to make society at large concious of its duty to respect the Human Rights and fundamental freedoms of women and girl-children; ..."
United Nations declaration to eliminate violence against women


"O Homem nasce livre e em toda a parte está acorrentado."
Jean-Jacques Rousseau

"Globalise respect for Human Rights, globalise justice and globalise accountability for those who abuse rights."
Amnesty International



"O sol, tal como a lua e as estrelas nasce, morre e depois volta sempre. Quem criou todas as coisas também criou o Homem. O Homem nasce e morre mas depois não volta. Nunca regressa."
cântico Denka (tribo centro-africana)

GOSTO PELA PALAVRA - a short story

um dos primeiros contos curtos que tenho vindo a escrever, nos últimos meses...


- Pára de comer as palavras!
Dizia-lhe a professora com o enfado próprio de quem repete o mesmo diariamente e vezes sem conta.
- Alfredo, não se percebe nada daquilo que dizes! E amiúde, sua mãe desdobrava-se em desesperadas e quase patéticas tentativas de alterar a situação. Nada dera resultado. Era superior às suas próprias forças, e com o tempo, transformara-se numa notória forma de dependência.
Alfredo sempre gostara de saborear palavras, e já na primária apreciava o gosto dos ditongos, aprendera a degustar o travo das consoantes, transformando-se num verdadeiro gourmet, primeiro entre agudas e esdrúxulas, depois com advérbios, abordando mais tarde todos os pratos suculentos das polissilábicas, prosseguindo desenfreadamente pelos exóticos agridoces das línguas estrangeiras.
Coleccionava religiosamente enes com til, oós e uús dotados de trema, arrobas, símbolos geométricos, caracteres orientais e outras iguarias para ocasiões festivas, tais como o seu aniversário, o Natal, o dia-de-todos-os-santos, e para quando o seu primo que vivia em Newark os visitava, ano após ano. Gostava especialmente desse primo d'América, embora não fosse realmente seu familiar, pois ele era primo, ao que constava, de uma meia-irmã da sua mãe, que colocara sempre fortes dúvidas sobre a veracidade desse hipotético parentesco. A verdade é que todos o tratavam por "primo", pois também nunca chegaram a saber o seu nome próprio... A predilecção de Alfredo por ele vem do tempo em que o emigrante, apercebendo-se da tendência do rapaz para as letras, começou a trazer-lhe surpresas do outro lado do Atlântico: uma versão bilingue cambodjano-hindú do "Guerra e Paz", todos os exemplares desse ano do diário da comunidade portuguesa radicada em Newark, a lista telefónica do estado do Minnesota, para além de 14 mil folhetos promocionais de um stand de comercialização de alfaias agrícolas de New Jersey.
De início ninguém dera por nada, mas pouco depois de ter ingressado na escola, começaram a aparecer pedaços de papel semi roídos ou lambuzados debaixo dos móveis e dos almofadões do sofá. Os colegas da escola deram o toque final apelidando-o de Alfredo... Alfabeto.
Mas foi quando a sua irmã mais velha precisou de consultar o dicionário para um trabalho da disciplina de Português que o caso começou deveras a preocupá-los: toda a letra P, mais aquelas páginas de outra cor que são relativas às expressões em Latim, haviam desaparecido. É de assinalar a tendência, ainda em precoce idade, para linguagens e idiomas inusuais.
As queixas seguintes provieram de outro irmão de Alfredo que, com incredulidade estampada no rosto, comunicou à restante família que todos os balões, vinhetas e filacteras dos álbuns de banda desenhada que compunham a sua colecção do Tintin tinham sido meticulosamente recortados e extraídos das páginas das aventuras do intrépido repórter, seu cão Milou e seu amigo Capitão Haddock. Por certo este último personagem, nas alturas em que se enfurece, fornecia-lhe os balões mais saborosos, recheados de onomatopeias e símbolos universais que podem facilmente levar ao rubro os pavilhões auriculares duma qualquer freira mais puritana. Mas por falar em vociferações, injúrias e demais terminologia de calão, é necessário reconhecer que Alfredo recusava sistematicamente tocar em palavrões ordinários e outras expressões de baixo teor ético-social, de péssimo sabor, aliás, como ele próprio afirma numas gravações audio que deixou, à laia de memórias ( inicialmente tentou escrevê-las numa espécie de diário autobiográfico, mas acabou por mastigar as páginas à medida que as ia escrevendo...).
Mas desenganem-se se pensam que o consumo se confinava apenas à palavra escrita ou impressa. A expressão verbal foi também, desde cedo, uma das suas fortes adicções. Era frequente vê-lo, a meio das frases, produzir um som semelhante ao de um assobio, só que de fora para dentro, correspondendo ao sugar de um ou outro termo que, evidentemente, não chegava a pronunciar, ao que se seguia um sonoro estalar da língua contra o céu da boca, de pura satisfação. Foi aqui que o vício se voltou contra o viciado, pois enquanto se confinou à grafologia, ao stencil, offset, jacto de tinta, laser, carimbo, às máquinas de escrever, calculadoras, registadoras, enfim, aos caracteres impressos, não vinha mal de maior ao mundo ( à excepção dele próprio, como daquela vez em que tentou ingerir uns cubos de brincar com letras nas faces, o que lhe provocou uma violenta indigestão... ).
A desdita começou quando teve a infeliz ideia de querer provar as palavras directamente da boca das outras pessoas, enfurecendo colegas e familiares. Aproximava-se subrepticiamente quando proferiam algo, e rapidamente, quase encostando a sua boca à deles, aspirava sofregamente. E foi quando tentou esta manobra, numa pomposa cerimónia oficial, com o Presidente da República, que fez transbordar o copo de uma vez por todas. Foi preso, julgado e acusado de comportamento indecente e desviante, ofensas à moral pública e aos bons costumes, assédio sexual na pessoa de um governante, entre várias outras violações a diversos códigos. Mandaram vir os especialistas que o analisaram durante semanas a fio, voltando com o diagnóstico: esquizofrenia indutora de comportamento compulsivo incontrolável, em estado avançado.
Foi internado numa instituição estatal para doenças mentais e raras patologias, onde só lhe forneciam escassas doses de revistas mundanas tipo Hola, com mais de cinco anos sobre a data de tiragem, depois da prévia extracção de quaisquer letras, algarismos ou caracteres.
Nunca mais o vimos.
Lembrei-me de contar a sina de Alfredo porque li por acaso, um dia destes, no jornal, que surgiram dois casos semelhantes: um em Dar-Es-Salam e um outro na Patagónia.
Rui Azul

14.10.05

Crítica Magazine Artes nº27 Março 2005

MAGAZINE ARTES Nº27 MARÇO 2005

Rui Azul - À Bolina

«À Bolina», assim se chama este disco do saxofonista portuense Rui Azul, que, que assina também a produção e gravação, para além de tocar e manipular digitalmente todos os instrumentos que aqui se escutam. Este registo surpreende pelas suas caracteristicas universalistas, com sonoridades ambientais e elementos harmónicos que nos transportam, ou sugerem, locais remotos e paragens exóticas. Muito feliz a introdução de instrumentos de cariz tradicional como o didgeridoo, darbuka, ou a zummara, assim como as "vozes", que criam atmosferas de contrastes e cores, musicalmente bem definidos. Intervencionista na sua temática - a globalização, o ambiente, são alguns dos temas aqui evocados -, Rui Azul, constrói um disco em que o
jazz percorre em harmoniosos ventos os caminhos do mundo. Excelente.
(cd Registos Autónomos, Discantus-Mundo da Canção)

Entrevista Jornal de Notícias 17/01/2005 p. Cultura


Entrevista-Rui Azul
FIZ UM PÉRIPLO POR PARAGENS EXÓTICAS

O músico Rui Azul está de regresso com novo disco, "À Bolina", uma incursão pelo etnojazz
Suão, Pequim, Magrehb são algumas das palavras que podemos ler nos títulos do novo trabalho discográfico de Rui Azul, "À Bolina", pistas que indicam de forma inequivoca o vento que o ajuda a navegar nestas suas viagens: o etnojazz. Ao fim de 30 anos de carreira é um músico muito seguro de si que nos revela o que é que o levou a tocar todos os 10 instrumentos que utilizou neste seu novo CD.

[Jornal de Notícias] Apesar de ser um músico de matriz jazzistica, sempre teve propensão, ainda que pouco libertada, para a música etnográfica. "À Bolina" é o projecto em que assume essa sua faceta?

[Rui Azul] Sim e não. Sim, porque quis fazer o tal périplo, uma circum-navegação aportando em diferentes, remotas e algo exóticas paragens ou escaIas disseminadas pela "world", o que trouxe uma certa coerência ao álbum. Não, porque não assumo nada sem a presença do meu advogado e, a avaliar pelos temas que já compus para o próximo registo, vai acontecer um redireccionamento, apontando para tipologias e estilos mais libertos das sonoridades étnicas. Em "À Bolina" são detectáveis componentes étnicos, ou etnojazz, mas também afinidades com outras estéticas, mesmo até minimal, como em certos loops de marimbas e balaphons que desfilam em background.

[JN] Pela primeira vez não recorre a outros músicos e decide tocar todos os instrumentos. Isso aconteceu por razões estéticas ou económicas?

[RA] A razão prende-se com o estado de frustração que me invadiu quando constatei, em finais de 2003, que as fitas nas bobinas em que gravara uma dúzia e tal de originais se encontravam deterioradas devido ao bolor e humidade. Esses temas destinavam-se a ser editados em cd, e continham a colaboração de vários convidados: Vítor Rua, Hélder Gonçalves, Rui Júnior, Raul Marques, Carlos Azevedo, Filipe Mendes, Pedro Taveira, Quiné, David Lacerda, Paulo Gomes, Miguel Megre, os Mareantes do Rio Douro, entre outros. Significavam seis anos de estúdio, de gravações, de contactos, de trabalho...inglório. Decidi então gravar rapidamente, em "home studio", por minha conta e risco, novos temas (os outros já me começavam a enfastiar...), de modo que tive necessidade de virar a página, pois formara-se um hiato considerável, desde a edição do meu disco anterior..

[JN] Também decidiu agora recorrer à voz, coisa que nunca tinha acontecido...

[RA] Sim, para além dos samples das vozes de Martin Luther King, John Kennedy, de uma cantora "soul" black, e de uma mulher e adolescente africanas, gravei a minha voz, num outro. Utilizando um dos sarcásticos poemas de Mário - Henrique Leiria ("Novos Contos do Gin") e sobre uma sequência quase minimalista de marimbas e vibrafones, decidi fazer de "diseur", entoando "A Família e o Esturjão".Processei a minha voz, baixando o "pitch" em um tom e meio, simulando um baritono, acrescentando ainda mais ironia ao tema.

[JN] As suas improvisações aqui são mais contidas, estendem-se muito menos do que quando toca exclusivamente jazz. O que levou a esta alteração de comportamento? Terá a ver com o facto de tocar todos os instrumentos?

[RA] Não me é muito fácil interpretar esse facto. Quando se refere comparativamente ao jazz, está a referir o mainstream, penso, porque considero que muito do que se pode ouvir neste disco é jazz, pois as fronteiras desta música são extremamente vastas. Penso que utilizo mais o silêncio, entrecortando o discurso melódico, como aconselhava Miles. Acho que está mais depurado, mais sentido e menos tecnicista. Outra das razões prende-se com a vontade de manter os temas mais curtos, pois tive que seleccionar de entre 24 temas que gravei. Tinha material para um triplo..

[JN] Não resistiu a incluir um tema eminentemente jazzistico, "Tea Gee", cheio de fluidos coltraneanos.

[RA] É verdade, estranhos são os sinuosos e inesperados caminhos da criatividade... Agora mais a sério, não me considero (e não me consideram) coltraneano. Associam-me habitualmente mais ao Sonny Rollins, que de facto me influenciou nos primeiros anos.

[JN] Para apresentar este disco ao vivo vais ter de elaborar muitas alterações?

[RA] Nem por isso. As alterações são só a nível das improvisações, sopros e de algumas sequências harmônicas, cujas pistas foram retiradas de modo a obter apenas uma espécie de secção rítmica simplificada, sobre a qual os músicos que me acompanharão irão tocar. Aumentei a duração de cada uma dessas bases dos temas, pois ao vivo os solos são mais extensos e em maior número, mesmo nos temas em que os solos individuais se transformam em diálogo, o que origina sempre ambientes interessantes e inusitados.

por Rui Branco - Jornal de Notícias de 17 Jan 2005 - pág. Cultura

Crítica do PÚBLICO (suplemento Y) 18/02/2005



RUI AZUL À Bolina pontuação: 7 \ 10
Eis um disco agradável, imaginativo, sugestivo e razoavelmente original no panorama das "novas músicas", tendência suave, da música portuguesa. Rui Azul, músico do Porto, realizou sózinho "À Bolina", um álbum de viagens, tema estafado quando os itinerários repetem as rotas do turismo. Não é o caso de "À Bolina". Azul, além de produzir e arranjar, toca saxofone tenor, sax MIDI, flautas, rhaïta, zummara, didgeridoo, darbuka, percussões étnicas, voz, teclados, samplers, sequenciadores, programação e "loops". Ah, sim, também foi ele que gravou, misturou, masterizou, fez o desenho gráfico, a BD os textos. "À Bolina" é um álbum de´boa fusão, entre jazz, "world" imaginária e electrónica sequenciada. Vozes deslocadas no espaço e no tempo, sons híbridos, batidas entre o computacional e o ritual. A escola é óbvia: Musci/Vennosta, Benjamin Lew, Steve Shehan. Mas Azul é bom colorista e sabe combinar os tons, dando de facto pistas para uma viagem interior que é afinal cinema da imaginação. As ilustrações de BD têm algo da "Garagem Hermética" de Moebius. Um passo à frente de Rão Kyao, Ficções e Carlos Maria Trindade/Nuno Canavarro na elaboração de fusões oníricas com âncora, mais ou menos funda, em Portugal.
Fernando Magalhães - discos\roteiro - Público - suplemento Y - 18 fev 2005

10.10.05

Descendência - a short story

Este é mais um dos contos curtos que tenho criado recentemente...

- Irra, que já era demais!
Quando informaram Don Ignazio Felipe de Monasteros Rubicalde y Vega de Torquemada da recente conversão do seu 12º filho ao Budismo e consequente retiro ascético no Butão, este não se conteve e alterou a habitual fleuma e bonomia que caracterizam aqueles cujas posses e bens desafiam qualquer vã tentativa de quantificação ou avaliação contabilística ou mesmo pura e simples enumeração de todos os bens adquiridos, apropriados, recebidos, roubados, espoliados, obtidos através da força bruta, por outros processos menos lícitos ou modos de actuação que irão estar por explicar durante décadas, ou talvez mesmo para sempre.
Mas o desespero de Don Ignazio focalizava-se apenas num único e só desígnio: o de encontrar um herdeiro à altura, um seu descendente que pudesse continuar a sua obra, que soubesse desempenhar eficazmente as funções de grande proprietário, administrando com pulso de ferro todo o seu legado, que lhe seguisse os passos, que tomasse as rédeas dos seus numerosos ranchos e herdades, com manadas de gado e plantações. E tudo isto em hectares e hectares a perder de vista, espalhados por um vasto território que ia desde o Novo México às Honduras, desde Guadalajara ao Panamá, dos Andes ao delta do Orenoco. É que os anos já lhe pesavam e iam-lhe faltando as forças para estalar o chicote que o tornara famoso e temido entre peones, empregados e demais rancheiros da região, pois aplicava a justiça e impunha a disciplina pelas próprias mãos, invariavelmente sob a forma de vergastadas nas costas dos desgraçados que ousassem contrariá-lo ou desobedecer-lhe.
Mas a escolha de um herdeiro esbarrava sempre nas inconvenientes características que apresentavam os diversos indivíduos que constituíam a sua imensa prole. Não que lhe faltasse por onde escolher, portanto, mas quanto mais voltas dava à cabeça menos saída encontrava para o problema.
Um dos outros filhos estaria algures na Europa, ao que parece vivendo de expedientes e negócios obscuros ligados à economia paralela, fazendo com frequência a ligação entre Amesterdão, Berna, Zurique e outras cidades, transportando substâncias psicotrópicas de teor ilícito na Suiça e outros países, mas perfeitamente legais nos Países-Baixos.
Um outro, para dar um exemplo, utilizara os rudimentos que as aulas de piano que fora forçado a ter quando criança lhe forneceram, (uma das manias da sua 3ª esposa, assassinada a mando de um cartel boliviano, como retaliação contra Don Ignazio), para se integrar, como teclista em diversas bandas punk-hard-rock-gótico-trance-techno-urbano-depressivas que pululavam a zona este de Los Angeles, Califórnia.
Um outro ainda, dedicara-se ao alpinismo e acabara por morrer gelado algures a meio da escalada da temível encosta norte do Anapurna, isto a fazer fé num sherpa, o único sobrevivente dessa malograda expedição.
E por aí fora, todos os seus filhos, sem excepção, evidenciavam particulariedades negativas de carácter, impeditivas para o desempenho da função em questão.
É claro, havia sempre a hipótese de legar o seu património a uma das filhas, mas encarava-a como remota, pois o seu arreigado machismo não lhe permitia aceitar uma fêmea à frente dos seus ranchos. Ironicamente, mesmo por aí, a escolha confinava-se entre desmioladas que se entregavam á sedução e engate de meninos ricos que passeavam toda a sua futilidade a bordo de dispendiosos e potentes descapotáveis pelas avenidas de Miami Beach ou Beverly Hills, e duas gémeas que se haviam devotado à vida monástica, ingressando num longínquo convento, o das Carmelitas Trepadoras, cuja povoação mais próxima, escassamente era digna desse nome, estava ausente de qualquer mapa e irremediavelmente perdida nos contrafortes da cordilheira dos Andes. O lado da descendência feminina não apresentava, portanto, qualquer solução viável e o panorama parecia cada vez mais negro ao grande proprietário, à medida que o tempo lhe escasseava.
Foi então que o ignóbil Don Ignazio, observando o fumo que saía das chaminés das cozinhas, se lembrou que os frutos das suas sementes não se limitavam apenas a crescer no pomar legalmente registado, mas também em árvores exteriores àquele, o que, traduzido por miúdos, queria dizer que também tinha bastardos. Existia precisamente um filho, seu e da cozinheira que há mais anos o servia, e todos o sabiam, embora não ousassem afirmá-lo com temor das consequências. Não o reconhecera como filho na época e bastardo continuara a ser, passados... quantos? uns vinte e tantos anos, seguramente, raciocinava Don Ignazio. Concluiu então ser ele a única hipótese para a sua sucessão, e restava informar-se do paradeiro do rapaz e demais pormenores, pelo que mandou chamar a cozinheira à sua presença.
Que sim, que estava vivo e de boa saúde, que bom moço se fizera, e que acabava nesse preciso ano, para grande orgulho de sua mãe, o curso universitário de Gestão Agrária, ou coisa semelhante, o que vinha mesmo a calhar. Nem de propósito. Foram incumbidos os seus advogados de legalizarem a paternidade do jovem e de o avisarem que era aguardado no final do semestre na herdade, para uma importante conversa sobre o seu futuro.
Recém-chegado do seu pequeno quarto do campus universitário da Cidade do México, foi levado sem mais detença à presença de Don Ignazio. Este não conseguiu evitar que transparecesse o espanto que lhe assomou o rosto, quando viu o rapaz entrar, pois era exactamente a sua figura, quando tinha aquela idade. Bom, meu filho é concerteza, pensou o latifundiário com um misto de alívio, ainda alguma incredulidade e uma pontinha de orgulho. É que nenhum dos seus outros filhos se lhe assemelhava tanto.
Tratou de inteirá-lo do seu propósito de o fazer principal herdeiro, lhe passar o testemunho da administração exclusiva da globalidade das suas propriedades e demais património acumulado.
Estupefacto, o jovem licenciado lá foi anuindo, a medo de início, mas progressivamente com crescente à-vontade, à medida que ia interiorizando o alcance e a real extensão da proposta que lhe apresentavam. Pelo lado de Don Ignazio, seria difícil imaginar uma situação que lhe agradasse mais. O rapaz, para além de ser a sua cara chapada, caíra-lhe no goto, pois adivinhava nele, se bem que embrionárias, características de liderança e determinação que o tinham transformado numa das pessoas mais ricas e poderosas da região, se bem que também uma das mais odiadas.
Foram tomadas as diligências necessárias para a transferência de poderes mesmo a tempo, pois a saúde de Don Ignazio só beneficiaria com o abrandamento dos inúmeros afazeres que diariamente o ocupavam.
Foi num desses dias, que após acordar, dirigindo-se à varanda da enorme mansão, reparou na soberba figura do seu herdeiro, montando um puro-sangue criado nas cavalariças da herdade. Dava ordens a uns trabalhadores que instalavam uma espécie de faixa de tela com inscrições, esticando-a entre as duas grandes árvores que ladeavam a entrada principal. Reentrando no quarto, buscou os seus binóculos para poder perceber melhor o que se passava. Pôde então ler o que estava escrito na faixa, agora totalmente esticada: COOPERATIVA AGRÍCOLA EMILIANO ... e invadiu-o uma fulgurante síncope cardíaca.
Conta quem viu, que a primeira pessoa a chegar junto do morto foi a cozinheira, que com um sorriso de satisfação sussurrou ao ouvido do cadáver: "pués... que Viva ZAPATA, Don Ignazio!!!". Rui Azul

9.10.05

excerto de "Uma Viagem Fantástica", BD desenho: R Azul / script: Manuel A Pina (ed. Gec A/30 pg./50 mil ex./1996)

5.6.05

JAZZ EM PORTUGAL:

• A AUSÊNCIA DE UMA ESTRUTURA ORGANIZADA:
Neste país, inicia-se a construção das estruturas culturais pelo telhado. É notório em diversas áreas, como por exemplo a Banda Desenhada: eventos aglutinadores surgem anualmente (Festivais da Amadora, do Porto, Cartoon Portugal, etc...). Também com maoir ou menor regularidade, são editados álbuns de autores nacionais, por editoras independentes ou departamentos especializados das maiores. Mas quanto à base, ao fermento, à raiz, ou sejam, as revistas periódicas, os fanzines com certa qualidade... nada. Zero. Nicles. Todos os esforços nesse sentido morreram demasiado prematuramente, por razões de diversa índole que não importam, por ora, para este artigo.
Temos, assim, as super-estruturas, as intermédias, funcionando com alguma regularidade, mas total ausência de actividades disseminadas pelo país, na base, no dia-a-dia, fervilhando e potenciando o aparecimento das inovações, das interacções dos criadores entre si e com a sociedade em geral.
O mesmo se aplica ao Jazz: os festivais brotam como cogumelos, de alguns anos para cá
(de Guimarães a Angra, do Seixal a Matosinhos, de Tomar ao Funchal, da Cidade ao Dia de Verão...) Estes representam a super-estrutura, o telhado, o vértice da pirâmide. Séries de concertos são também promovidos, do CCB ao Rivoli, da CulturGeste à Praça da Erva em Viana, etc... Alguns músicos vêem a sua música editada (no caso da B.D. por uma Baleia Azul, no caso do Jazz por um Trem Azul... um dia ainda lhes ponho um processo...), com mais frequência nos últimos anos, felizmente. Estamos assim, na presença e existência das estruturas intermédias.
Mas, na base, onde a actividade, a frequência, os concertos semanais, as Jam sessions, as sessões de divulgação, dever-se-iam multiplicar, acontecer um pouco por todo lado, o panorama deixa imenso a desejar. Um Hot Club e pouco mais na capital, um outro em Alcobaça, Matosinhos e Braga são os locais onde se pratica e se pode "ouver" Jazz. Contam-se pelos dedos... e ainda sobram... dedos e músicos. Muitos. Sem ter onde tocar, numa base semanal, diária. Que seria fundamental. Indispensável.
Nos nossos parceiros comunitários, encara-se o Jazz como uma forma de cultura. Edilidades municipais desburocratizam os licenciamentos, lançam apoios e incentivos favorecendo o surgimento de locais como clubes e bares onde aconteça Jazz ao vivo. Em 79/80, tocava eu na banda da casa, no B 14 Jazz, em Roterdão, e soube pelos sócios/gerentes que a vereação da cultura da cidade lhes fornecia um subsídio de cinco mil contos (!) para auxiliar ao pagamento dos cachets de músicos estrangeiros. Posso citar alguns, que às Sextas e Sábados, actuavam no mesmo palco que nós, HouseBand (4 Holandeses e 1 Português), nas Quartas, Quintas e Domingos. Músicos como Tete Montoliu, Sun Ra Arkestra, Orsted Pedersen, George Adams/Don Pullen, Frank Wright, Buddy Tate, Andrew Cyrille, entre outros. Em Amsterdão, a associação de músicos de Jazz e Improvisada possui umas instalações, a Bim-Huis, que inclui sala de concertos, bar, sala de exposições, secretaria, além de vários mini-estúdios para aulas e ensaios, e um estúdio de gravação. Uma Casa da Música, só para o Jazz! Que tal? Construída vai para 30 anos... Por cá, nem daqui a 30 teremos algo assim.
É inacreditável que a Câmara de Lisboa ainda não tenha arranjado um novo local para o Hot, de modo a poder caber pelo menos um piano de meia cauda no palco, e um pé direito que permita a um trombonista esticar-se à vontade durante o solo...
Rui Azul

1.6.05

REFLEXÕES ACERCA DO JAZZ (1)


• O prazer ou fruição que experimentamos na audição de um solista é maior:
1 - Se ele demonstrar ser um prolixo executante de escalas, exercícios, malhas, citações, cascatas de bop ou hard-bop licks, a velocidades vertiginosas, dobrando o tempo que a secção rítmica debita, triplicando, quadruplicando (em escassos instantes, é certo), um virtuoso dedilhador
que adora exibir como os seus dedos são aparentados com o speedy gonzalez ou o bip-bip, cometendo proezas (de mau gosto) como tocar parte do Donna Lee, por ex., no meio de uma balada - já vi / ouvi acontecer...
ou
2 - Se nos apercebermos que toca em contenção, escolhendo as alturas para intervir com mais intensidade, intercaladas com momentos mais distensos, usando o silêncio (que também é uma nota) para realçar, ou evidenciar a sucessão do discurso, tal qual faria o mestre Hitchcock para provocar aqueles momentos de suspense, tão essenciais a quem conta uma estória bem contada, fazendo respirações, pausas, ralentis, nos pontos fulcrais ?
• Isto não era um questionário de escolha múltipla, apenas uma figura de retórica que escolhi para abordar este tema. Nunca vos aconteceu ouvir um quarteto tocar de enfiada, como se fossem salvar o pai da forca, quatro ou cinco standards em medium-up tempo, inserindo a malha 47, a 52, a 33 (estas do livro de solos do Coltrane), saltando depois para sequências em ciclo de 4.as (desta vez do Jazz Improvisation do David Baker), prosseguindo alucinantemente para as diminutas, e acabando talvez com o modo lydian (do Lydian Concept by George Russell). E tudo a mata-cavalos, como se o mundo fosse acabar logo a seguir ou tivessem feito uma promessa mística de se penitenciarem a tocar tudo... à bout de soufle! Uff!
Pelo meio, onde ficou a estória? Como descortinar a essência, a personalidade, a originalidade desses músicos, por debaixo da catadupa de exercícios, automatizações digitais (de dedos, não de uns e zeros - you know, bits & bytes... ), mais próximo de um qualquer espectáculo circense ?
O Jazz não é isso. Eles possuem a técnica, mas falta-lhes a alma, a calma, a habilidade de inserir sentimento, vivência, reflexão para serem capazes de contar a sua "estória", ou o seu solo, o seu discurso, de um modo pessoal, diferenciável, de modo a despertarem naqueles que os ouvem a curiosidade da descoberta de algo (que apesar de conhecido - o tema, o swing, a sequência de acordes, etc...) que distingue aquele trompetista, saxofonista, qualquer outro ....ista, dos seus pares.
Numa das últimas edições do Matosinhos em Jazz, no final de um dos concertos, um amigo meu (actor, humorista), disparou-me esta à queima-roupa: « ... Oube lá, parece q'hoje in dia os múzecos de Jazz boum pr'o palco p'ra competir uns c'os outros, p'ra ber quem consegue dar mais nuotas por segundo...». Aquilo deixou-me a pensar, de tão sintomática, ajustada (apesar da cerrada pronúncia tripeira ... propositada, porque ele não fala sempre assim...) foi aquela "boca", ou desabafo. Preferir a técnica em detrimento da estética é borrifar-se para a... ética do Jazz. Ou não?
• O Miles dizia frequentemente para os seus músicos que por vezes são mais importantes as notas que não se dão que as que são tocadas. "Se não tiveres nada de novo ou importante para contar, não toques. E acima de tudo, aprendam a ouvir o silêncio".
O quinteto Miles / Coltrane acabou porque era insuportável para o primeiro ficar entre 7 a 20 minutos à espera que o segundo terminasse o seu solo. Indagado relativamente a isto, John Coltrane retorquiu: « ... I know, man, mas quando estou a solar fico tipo em transe e não sei como parar de tocar...». « .... É muito fácil !» disse Miles - « Basta fazeres isto !...» e ao mesmo tempo exemplificou, imitando o gesto de pura e simplesmente retirar o bocal do saxofone... da boca !
Este episódio verídico antecedeu o fim de um dos mais fabulosos 5tetos que o Jazz já conheceu, tendo recorrido a ele para ilustrar uma das facetas daquilo que abordei, mais atrás.
Rui Azul


live drumming !...

A MÚSICA É A MAIS ETÉREA E A MAIS ABASTARDADA DAS ARTES

textos opinativos acerca do Jazz... e aí vai UM...





A MÚSICA É A MAIS ETÉREA E A MAIS ABASTARDADA DAS ARTES.

Penso-o e afirmo-o.
Etérea, pois dada a sua especificidade perfomática, só a Dança e o Teatro se lhe podem aproximar.
O que é a Música - executada ao vivo - senão umas notas, uns acordes, uns ritmos, uns sons, de tal modo etéreos, impalpáveis, que numa fracção de segundo se dissolvem, dando lugar a outros, tão fugazes como os primeiros, e assim sucessivamente, encadeados no tempo até a peça termine. E a assistência, se a houver, bate com a mão direita repetidas vezes na mão esquerda, que permanece estática (em geral).
Não resisto (e vão-me perdoar os leitores por tal desvio) a contar como surgiu o rital de bater palmas no final de um acto perfomático. Segundo parece, foram os chineses, centenas ou mesmo milhares de anos atrás, que, fartos do ritual que se desenrolava no final de uma peça (discurso, representação ou actuação), que consistia na deslocação, em fila, de cada elemento do público até junto dos actores, músicos, oradores, artistas, para lhes manifestarem o apreço com umas palmadinhas nas costas. É evidente que, quanto maior fosse o número de assistentes ou de artistas, mais tempo esse ritual de apreço demoraria, e em pior estado ficavam as costas dos artistas, especialmente com espectadores mais ... eufóricos. De modo que se sintetizou o processo, passando a mão esquerda a simbolizar as costas do performer, e daí ela esperar que a direita vá ao seu encontro.
Aquelas fracções de tempo em que a Música está a ser executada são únicas, irrepetíveis, tal como a corrente de um rio que passa por baixo de uma ponte é sempre diferente a cada segundo que passa. Na Literatura, nas Artes Plásticas, na Fotografia, no Cinema, na Banda Desenhada, para citar algumas das 9 Artes assim consideradas, os momentos de criação e consequente execução da obra artística têm um carácter mais reservado, intimista, longe dos olhares do grande público. Quando está pronta, anuncia-se com alguma pompa (e circunstância) que se vai desvendar o segredo, ou mais prosaicamente, inaugura-se a exposição, apresenta-se o livro, estreia-se o filme. O autor ali fica, apertando a mão de conhecidos e desconhecidos, a ouvir elogios e baboseiras, enquanto o público contempla o resultado do tempo de exílio ou ermitagem do artista. Resultado esse, ready-made, ou seja, o autor já não pode mudar uma vírgula, acrescentar uma pincelada ou um fotograma mais.
Desilusão para nós, espectadores e cómodo para o autor. Desilude porque não podemos aproximarmo-nos do pintor e perguntar-lhe: -« Foi você que pintou estas telas? Pinte lá um bocadito para nós vermos...». Temos que acreditar que sim, que foi ele. Cómodo para ele porque ninguém tem que saber que quando escreveu determinado capítulo estava na sanita, a fazer o que tinha que fazer; ou ainda aqueleoutro que quando pintou certo quadro andava de cuecas pelo atelier, com uma garrafa de Jack Daniel's quase vazia numa mão e um pincel na outra, a pingar amarelo no dedão do pé direito... É, diríamos que não seria muito dignificante para o prestígio da sua obra em geral e para ele próprio, em particular, a pública exibição desses instantâneos de "pura criação".
Só o Músico, e principalmente o Músico de Jazz, não favorece de tais benesses. Não só mostra perante o público que é ele que está ali a tocar (de preferência sem estar só de cuecas), como cria a sua obra nesse momento, espontaneamente (ninguém traz os solos decorados de casa). É como andar no arame, sem rede. Os actores, esses já sentem a presença da rede, pois já conhecem o papel, as deixas, os diálogos, ensaiaram-nas inúmeras vezes e vão repeti-las, noite após noite, do mesmo modo, ou pelo menos com raras, subtis e imperceptíveis alterações. Um pouco monótono, é certo, mas pelo menos o público vai mudando a cada actuação... No mundo das artes em geral e nas do espectáculo em particular, os Jazzmen são uns verdadeiros cascadeurs*. Não que arrisquem a vida, como aqueles, mas uma noite má ou desinspirada pode trazer futuros dissabores, se houver críticos entre a audiência. Complacência e tolerância são palavras que não existem no seu dicionário.
Bom, dirão vocês, e então os discos?
As gravações? Ainda bem que as há, porque para além de não ser prático e economicamente imcomportável, é impossível ter, em nossa casa, o quarteto do Thelonious Monk a tocar para nós à hora que nos der na real gana. Mas o Jazz, por essência intrínseca, quer-se ao vivo. Alive and well.
Quando não há, temos os registos, audio e/ou video para matar saudades.
Abastardada porquê?
Imaginem locais públicos - centros comerciais, feiras, esplanadas, cafés - não está sempre uma música qualquer a debitar de uns quaisquer altifalantes? Na praia - não aparece sempre o chato com o "tijolo cantante" a berrar uma qualquer modinha irritante? Na televisão - cada anúncio tem, inexoravelmente, o seu tema - o tema do produto em questão - que, para assistirmos ao noticiário e a um filme, somos obrigados a gramar umas dezenas de vezes, e só nessa noite!
Por acaso nesses locais, nessas situações, são obrigados a presenciar qualquer das outras formas de arte? Teatro na praia? Literatura na hora da bica? Pintura na feira de Valença? Não, só nos impingem música ... e o que é pior, música má, bera, irritante, boçal, para acéfalos ou retardados mentais. Depois não admira que as pessoas tenham perdido o sentido do gosto, o sentido estético da música de qualidade. E a que não a tem, ... é aquela que mais vende. Mais abastardada, sim.
* cascadeurs - misto de duplos de cinema e de saltimbancos, que conduzem motos e viaturas em exibições espectacularmente acrobáticas e arriscadas
Rui Azul

30.5.05


o autor nos trópicos...