19.11.06

Sentir e praticar o Jazz - 1ª parte




Aquilo que estabeleci como linhas definidoras do percurso e do que tento pôr em prática, e que penso ser similar ou conter afinidades com o modo de encarar o Jazz de outros músicos, vai na esteira e recolhe elementos do rumo praticado e traçado por diversos músicos, desde Charlie Mingus até à actualidade.
A Mingus Dinasty ou o seu Jazz Workshop é um bom exemplo de como uma banda pode servir de escola formativa e pôr em prática a continuação do legado estilístico de um músico, ao mesmo tempo que cumpre as funções de rampa de lançamento para as gerações seguintes de improvisadores e criadores (poderia citar outros casos, como os Jazz Messengers, ou mesmo a Liberation Orchestra de Charlie Haden...).
Foi o caso de uma dupla que acompanhou e gravou com o próprio Mingus durante vários anos, e passou pela Dinasty: o saxofonista George Adams (que tive o prazer de conhecer e conviver algumas semanas em 1980, quando vivi em Roterdão*) e o pianista Don Pullen.
Absorvi das conversas inesquecíveis que mantinha com Adams (recheadas de recomendações e ensinamentos com que me bombardeava pontualmente**), da audição dos seus discos e da observação dos seus concertos, que o Jazz que praticam norteia-se pela compilação e utilização de material consistente (e com características de "terreno fértil" para germinar novas direcções) que é extraído e recolhido de diferentes estilos e correntes de Jazz:

• Uma das vertentes consiste numa ligação estrutural e processual ao MAINSTREAM, como definidor da linguagem jazzística, como denominador comum, assim como o pulsar do SWING (It don't mean a thing if... it isn't there, right?), ambos constituindo o que eu compararia ao "aparelho respiratório";

• Outra componente é a herança essencial contruída pelo BLUES, que corre nas veias do Jazz (e não só, também corre nas veias do Rock'n Roll, R'nB, Soul, Funkye, Rap, Hip-Hop,..), definindo estados de espírito, e componentes emocionais inerentes ao Jazz, e os reflexos da vivência material e espiritual do ser humano, expressos nas WORKSONGS e GOSPEL. Neste caso trata-se do "aparelho circulatório".


• Incontornável porque é inegável a sua influência (mais ou menos notória) sobre a improvisação de uma vasta maioria de músicos desde então, exercida pela renovação genial que Parker e seus pares trouxeram com o BE BOP. Tenho tendência a estabelecer uma ligação visual, pela cor, com o paralelismo da evolução na pintura e artes plásticas (impressionismo, expressionismo, cubismo,...) e o alcançar da modernidade estilística a meio do séc XX.
Patente ao nível melódico, com introdução de um novo fraseado discursivo que incluía notas de passagem não pertencentes à tonalidade de base e que "visitava" as extensões superiores dos acordes (nonas, décimas-primeiras, décimas-terceiras, quer maiores quer menores, 9#,9b,11#, etc..), acordes esses agora "expandidos" resultantes da criatividade musical de Dizzy, Bud Powell e Monk, entre outros, evidenciando as novidades também ao nível harmónico. Funcionam como "agents provocateurs" e agem sobre os sentidos - visão, audição.

• No plano social, a arte enfrenta responsabilidade enquanto agente cultural, forçando o artista a tomar consciência do seu papel perante a sociedade, ao recusar alhear-se egoísticamente ou anular-se numa prática de arte pela arte esvaziada de conteúdo.
A força da irreverência, o direito à indignação, os gritos de revolta libertadora, a abertura das consciências para novas formas de pensar e de encarar a sociedade e o mundo.
A beat generation, os movimentos anti-racistas de Luther King e Malcom X, o "Make Love Not War" dos pacifistas , e enfim, o inconformismo generalizado prenunciaram o aparecimento do FREE JAZZ e da NEW THING.
Penso que a ainda existência de algumas dessas premissas justificam indubitavelmente que elementos dessa estética do Jazz sejam englobados na prática jazzística actual. Porém, não de um modo indiscriminado, aleatório, desprovido de significado, mas encarada pelo músico como uma ferramenta de expressão, de clímax, de alerta, indignação, ou revolta. Cito exemplos dessa utilização nos discursos improvisacionais de George Adams e Don Pullen, ou de Roland Kirk, e de uma forma mais intensa, em Eric Dolphy.
Não pretendo ser redutor e limitar o free a esporádicos aparecimentos pontuais, pois são patentes as suas influências em casos de improvisação colectiva (aqui comum também no Dixieland e New Orleans), ou quando os músicos se propôem improvisar sem se sujeitarem a uma pré-determinada tonalidade, ou instituírem uma estrutura como base de apoio ou pretexto para improvisação, o mesmo se aplicando a uma cadência rítmica fixa ou previamente estabelecida.

• Fim da 1ª parte (continua)
(* e ** - abordarei mais em pormenor no final da 3ª parte estas vivências que desempenharam um importante papel para mim, enquanto músico de Jazz.)
Rui Azul

1 comment:

Anonymous said...

Fico a aguardar a 2ª parte . Gostei i menso