22.11.06

Sentir e praticar o Jazz - 2ª parte

• Estabelecendo o ponto da situação, verificamos:
A estética Jazzística que tomei como definidora do rumo a percorrer é formada por elementos provenientes de diferentes estilos fundamentais dentro da história cronológica do Jazz. Funcionam como as fundações de uma casa, e como pilares de sustentação, temos:
• Mainstream (ou middle-jazz) e Swing
• Blues (Worksongs, Gospel e Early Blues)
• Be Bop (+ Funk Jazz, West Coast e Soul Jazz)
• Free (e New Thing)

acrescentaria:
ETNO JAZZ
Esta outra componente consiste em adoptar elementos e referências pertencentes às músicas étnicas, utilizando escalas menos habituais, como a árabe, bizantina, flamenco, oriental, hindu, as pentatónicas africanas, etc..; introduzir cadências rítmicas em tempos compostos, 5/4, 11/8, 7/4, etc..., variando assim do usual quaternário ou ternário, e recordar que o Jazz alargou-se a sabores latinos, afro-cubanos, com colorações vindas das antilhas, da América do Sul, a Salsa Jazz, Bossa Jazz, assim como é de explorar a variedade tímbrica que fornecem os instrumentos étnicos, shenai, rhaita, flautas de bambú, tablas, timbales, temple blocks, darbooka, djembé, cítara, tamboura, uma miríade infindável de instrumentação utilizável, acrescentando variedade tímbrica alternativa à habitual panóplia usada pelos músicos no Jazz, sem esquecer, claro, os de criação mais contemporânea, que recorrem à electrónica, desde o órgão e o piano eléctrico aos samplers, controladores de sopro MIDI e outros processadores de som digitais.

• Neste ponto vou ao encontro daqueles que defendem que o Jazz que se faz hoje em dia deve reflectir o mundo actual em que estamos inseridos, de e-mails, ipods, gps, software & hardware, para permanecer vivo e actuante, destacando-se daquele que cumpre apenas uma função preservadora, como se de um "museu do Jazz" se tratasse.

• Relativamente à interacção com aqueles para quem a arte é criada e se destina, o músico deve estar atento ao seu público, até porque a sua arte não é um acto egoísta, criando apenas para si próprio, para quem está sobre o palco ou só para um punhado de fãns. Não se leia aqui que defendo que se o deva tornar mais simplista, mais acessível a todos, mais "vendável", mais mercantilista, pois o risco é grande de deixar de ser arte para se tornar um produto de mercado. Também uma posição radical, oposta, não é isenta de tender para a anulação da arte em si, pois penso que fechar-se num hermetismo é o mesmo que adorar o próprio umbigo, auto limitar-se, reduzir o campo de visão, e automaticamente, impedir qualquer tipo de realização artística. Coltrane afirmou: "Penso que a música pode elevar a mentalidade individual, pode desenvolver formas de pensamento superiores".
Por outro lado, algumas convicções que tomamos por inabaláveis aos 25 ou 30 anos podem e tendem a modificar-se, o tempo possibilita que observemos as questões de outras perspectivas, a partir de diferentes ângulos e pontos de vista.
Lembro-me de ver um concerto do Archie Shepp em 75 (76?) na Festa do Avante, ao tempo, ainda na Fil, ou melhor, quase só ouvir, porque entrou de costas para o público, numa atitude visivelmente de superioridade arrogante sobre o público "branco". Fez-nos ouvir o Free que praticava na altura, rude, gutural, enraivecido, revelador do seu modo de ver a sociedade e o mundo, na época.
Volvida uma década e tal depois, o mesmo Shepp brindar-nos-ia com um par de belos álbuns, um de trechos de Charlie Parker reinventados ao seu jeito, apenas com a companhia do contrabaixo do excelente NHOP, infelizmente já desaparecido, e o outro de parceria com Horace Parlan no piano, com deliciosos blues tradicionais, e ambos os registos, se não nos antípodas, porventura estão seguramente a muitos graus de longitude da música que ouvi naquele ano, na FIL. Charles Lloyd é mais um, entre muitos outros exemplos de passagem temporária e datável pelo Free.
Algo paradoxalmente, o mesmo músico pode praticar, em épocas distintas do seu percurso, estilos bem diferentes.

O Jazz é também, e sobretudo, uma música que reflete a vida de quem o toca, expressa sentimentos, emoções e vivências, um autêntico retrato sonoro da personalidade de um músico.
Nisso consiste uma das várias características ímpares inerentes ao Jazz e um dos seus imensos atractivos, para mim e para muitos outros músicos, melómanos e apreciadores em geral desta forma de arte surpreendente.
O "som da surpresa", como alguém lhe chamou.
Fim da 2ª parte (continua)
Rui Azul

nota - as ilustrações e pinturas que acompanham este texto, aliás como todas as publicadas neste blog, são originais do autor, executadas entre 1985 e 2006.

21.11.06

19.11.06

Sentir e praticar o Jazz - 1ª parte




Aquilo que estabeleci como linhas definidoras do percurso e do que tento pôr em prática, e que penso ser similar ou conter afinidades com o modo de encarar o Jazz de outros músicos, vai na esteira e recolhe elementos do rumo praticado e traçado por diversos músicos, desde Charlie Mingus até à actualidade.
A Mingus Dinasty ou o seu Jazz Workshop é um bom exemplo de como uma banda pode servir de escola formativa e pôr em prática a continuação do legado estilístico de um músico, ao mesmo tempo que cumpre as funções de rampa de lançamento para as gerações seguintes de improvisadores e criadores (poderia citar outros casos, como os Jazz Messengers, ou mesmo a Liberation Orchestra de Charlie Haden...).
Foi o caso de uma dupla que acompanhou e gravou com o próprio Mingus durante vários anos, e passou pela Dinasty: o saxofonista George Adams (que tive o prazer de conhecer e conviver algumas semanas em 1980, quando vivi em Roterdão*) e o pianista Don Pullen.
Absorvi das conversas inesquecíveis que mantinha com Adams (recheadas de recomendações e ensinamentos com que me bombardeava pontualmente**), da audição dos seus discos e da observação dos seus concertos, que o Jazz que praticam norteia-se pela compilação e utilização de material consistente (e com características de "terreno fértil" para germinar novas direcções) que é extraído e recolhido de diferentes estilos e correntes de Jazz:

• Uma das vertentes consiste numa ligação estrutural e processual ao MAINSTREAM, como definidor da linguagem jazzística, como denominador comum, assim como o pulsar do SWING (It don't mean a thing if... it isn't there, right?), ambos constituindo o que eu compararia ao "aparelho respiratório";

• Outra componente é a herança essencial contruída pelo BLUES, que corre nas veias do Jazz (e não só, também corre nas veias do Rock'n Roll, R'nB, Soul, Funkye, Rap, Hip-Hop,..), definindo estados de espírito, e componentes emocionais inerentes ao Jazz, e os reflexos da vivência material e espiritual do ser humano, expressos nas WORKSONGS e GOSPEL. Neste caso trata-se do "aparelho circulatório".


• Incontornável porque é inegável a sua influência (mais ou menos notória) sobre a improvisação de uma vasta maioria de músicos desde então, exercida pela renovação genial que Parker e seus pares trouxeram com o BE BOP. Tenho tendência a estabelecer uma ligação visual, pela cor, com o paralelismo da evolução na pintura e artes plásticas (impressionismo, expressionismo, cubismo,...) e o alcançar da modernidade estilística a meio do séc XX.
Patente ao nível melódico, com introdução de um novo fraseado discursivo que incluía notas de passagem não pertencentes à tonalidade de base e que "visitava" as extensões superiores dos acordes (nonas, décimas-primeiras, décimas-terceiras, quer maiores quer menores, 9#,9b,11#, etc..), acordes esses agora "expandidos" resultantes da criatividade musical de Dizzy, Bud Powell e Monk, entre outros, evidenciando as novidades também ao nível harmónico. Funcionam como "agents provocateurs" e agem sobre os sentidos - visão, audição.

• No plano social, a arte enfrenta responsabilidade enquanto agente cultural, forçando o artista a tomar consciência do seu papel perante a sociedade, ao recusar alhear-se egoísticamente ou anular-se numa prática de arte pela arte esvaziada de conteúdo.
A força da irreverência, o direito à indignação, os gritos de revolta libertadora, a abertura das consciências para novas formas de pensar e de encarar a sociedade e o mundo.
A beat generation, os movimentos anti-racistas de Luther King e Malcom X, o "Make Love Not War" dos pacifistas , e enfim, o inconformismo generalizado prenunciaram o aparecimento do FREE JAZZ e da NEW THING.
Penso que a ainda existência de algumas dessas premissas justificam indubitavelmente que elementos dessa estética do Jazz sejam englobados na prática jazzística actual. Porém, não de um modo indiscriminado, aleatório, desprovido de significado, mas encarada pelo músico como uma ferramenta de expressão, de clímax, de alerta, indignação, ou revolta. Cito exemplos dessa utilização nos discursos improvisacionais de George Adams e Don Pullen, ou de Roland Kirk, e de uma forma mais intensa, em Eric Dolphy.
Não pretendo ser redutor e limitar o free a esporádicos aparecimentos pontuais, pois são patentes as suas influências em casos de improvisação colectiva (aqui comum também no Dixieland e New Orleans), ou quando os músicos se propôem improvisar sem se sujeitarem a uma pré-determinada tonalidade, ou instituírem uma estrutura como base de apoio ou pretexto para improvisação, o mesmo se aplicando a uma cadência rítmica fixa ou previamente estabelecida.

• Fim da 1ª parte (continua)
(* e ** - abordarei mais em pormenor no final da 3ª parte estas vivências que desempenharam um importante papel para mim, enquanto músico de Jazz.)
Rui Azul

1.11.06

NO MORE BLUES


Tenho ficado admirado com extrema raridade com que, na "nova" geração de músicos de Jazz, escolhem um BLUES para tema numa Jam Session. Qualquer Song, de formato AABA ou "Rhythm Changes" (assim chamados porque baseados na estrutura harmónica do "I Got Rhythm", de Gershwin), preferencialmente em tempo médio e médio lento (que se torna "ainda" mais lento para o final dos solos...), é uma das escolhas unânimes, pelo que acontecem às meia-dúzias de enfiada, provocando bocejos e debandada entre a assistência a partir de certa altura.
What's up? No More Blues? Porque será que não gostam lá muito de tocar Blues? Será que os acham demasiado simples, só com 12 compassos, uma sequência harmónica facilmente adivinhável? Ou porque nos Blues é necessário colocar uma estética assumidamente "bluesy" (perdoem-me a redundância), com características e ingredientes que não dominam e nos quais não se sentem muito à-vontade? É que os BLUES são um dos pilares essenciais do Jazz, a raiz de onde ele brotou e onde está o seu ADN, como aliás de uma larga maioria das tipologias musicais que se foram ouvindo desde há oitenta e tal anos para cá, porque sem BLUES não teria havido Stevie Wonder, Jim Morrison, Stones, Hendrix, Jethro Tull, Rock'n Roll, Motown, Blue Jeans, Suede Shoes... isto para não ter que relembrar o Boogie-Woogie, Ragtime, Dixieland, Swing, Big Bands, Duke, Basie, Bird, Dizzy, Monk, Miles, Trane,... Only Gershwin, no W.C. Handy? Mas... mesmo os manos George and Ira, também... "Rhapsody in Blue"..., para além do I Got Rhythm (changes)...
E já ouvi argumentações a desfavor (vindas de músicos e de não músicos), tipo: -« Não sei, mas parecem-me sempre a mesma coisa, muito monótonos...» ??? A mesma coisa??? Pois bem, digam-me uma outra forma, uma outra estrutura de acordes, só com 12 compassos (em regra), que da Tónica (I) sobe à Quarta (IV), regressa à Tónica, sobe à Quinta (V), desce para Quarta (IV) e desagua "again" na base, ou seja, estruturalmente bastante básico (também o é juntar amarelo com azul, dá sempre verde, mas esse verde depende do tipo de amarelo e do de azul, see what I mean?), mas mesmo assim, tão "simples", que conseguiu metamoforsear-se em aspectos, arranjos, estéticas tão diversas como (e agora, vão-me perdoar de novo, mas todos os títulos que se seguem são BLUES, o que difere é o tempo (rápido/lento), arranjo, instrumentos, timbres, abordagens, e uma imensidão de características que podem ir da tonalidade ao penteado do cantor, da década ao compositor, da letra (lyrics), à sua ausência, e por aí fora...:
St Louis Blues (W.C. Handy); Rock Around The Clock (Bill Halley & his Comets); All Blues (Miles Davis); Back in USSR (Beatles); Billie's Bounce (Charlie Parker); Cars Hiss By My Window (Doors); Red Top (Lionel Hampton); Sunshine of Your Love (Eric Clapton); Work Song (Nat Adderley); What'd I Say (Ray Charles); Mr P.C. (John Coltrane); Green Onions (Brooker T. Jones); Blue Monk (Thelonious Monk); Cosmik Debris (Frank Zappa); Footprints (Wayne Shorter); Get Off My Back (B.B. King); Tenor Madness (Sonny Rollins); Mellow Yellow (Donovan); GoodBye Porky Pie Hat (Charlie Mingus); Highway Chile (Jimmy Hendrix); Follow Your Heart (John McLaughlin); Señor Blues (Horace Silver); Get Smart Theme (.?..série Olho Vivo); Empty Bed Blues (traditional); The Blues Walk (Clifford Brown); Stormy Monday (John Lee Hooker); Boogie Woogie Blues (Jelly Roll Morton); Blues for Newport (Dave Brubeck); Great Balls of Fire (Jerry Lee Lewis); Night Train (King Curtis); Honky Tonk Woman (Rolling Stones); Whims Of Chambers (Paul Chambers); Johnny B. Good (Little Richard)...
Se conseguiram lembrar-se de uns tantos, são ou não tão díspares como um Ford T e um Jaguar E? Não é?
Eu cá por mim continuo a ter muito prazer em ouvir e tocar BLUES, embora o facto de me chamar Azul não passe apenas de uma curiosa coincidência ...