5.6.05

JAZZ EM PORTUGAL:

• A AUSÊNCIA DE UMA ESTRUTURA ORGANIZADA:
Neste país, inicia-se a construção das estruturas culturais pelo telhado. É notório em diversas áreas, como por exemplo a Banda Desenhada: eventos aglutinadores surgem anualmente (Festivais da Amadora, do Porto, Cartoon Portugal, etc...). Também com maoir ou menor regularidade, são editados álbuns de autores nacionais, por editoras independentes ou departamentos especializados das maiores. Mas quanto à base, ao fermento, à raiz, ou sejam, as revistas periódicas, os fanzines com certa qualidade... nada. Zero. Nicles. Todos os esforços nesse sentido morreram demasiado prematuramente, por razões de diversa índole que não importam, por ora, para este artigo.
Temos, assim, as super-estruturas, as intermédias, funcionando com alguma regularidade, mas total ausência de actividades disseminadas pelo país, na base, no dia-a-dia, fervilhando e potenciando o aparecimento das inovações, das interacções dos criadores entre si e com a sociedade em geral.
O mesmo se aplica ao Jazz: os festivais brotam como cogumelos, de alguns anos para cá
(de Guimarães a Angra, do Seixal a Matosinhos, de Tomar ao Funchal, da Cidade ao Dia de Verão...) Estes representam a super-estrutura, o telhado, o vértice da pirâmide. Séries de concertos são também promovidos, do CCB ao Rivoli, da CulturGeste à Praça da Erva em Viana, etc... Alguns músicos vêem a sua música editada (no caso da B.D. por uma Baleia Azul, no caso do Jazz por um Trem Azul... um dia ainda lhes ponho um processo...), com mais frequência nos últimos anos, felizmente. Estamos assim, na presença e existência das estruturas intermédias.
Mas, na base, onde a actividade, a frequência, os concertos semanais, as Jam sessions, as sessões de divulgação, dever-se-iam multiplicar, acontecer um pouco por todo lado, o panorama deixa imenso a desejar. Um Hot Club e pouco mais na capital, um outro em Alcobaça, Matosinhos e Braga são os locais onde se pratica e se pode "ouver" Jazz. Contam-se pelos dedos... e ainda sobram... dedos e músicos. Muitos. Sem ter onde tocar, numa base semanal, diária. Que seria fundamental. Indispensável.
Nos nossos parceiros comunitários, encara-se o Jazz como uma forma de cultura. Edilidades municipais desburocratizam os licenciamentos, lançam apoios e incentivos favorecendo o surgimento de locais como clubes e bares onde aconteça Jazz ao vivo. Em 79/80, tocava eu na banda da casa, no B 14 Jazz, em Roterdão, e soube pelos sócios/gerentes que a vereação da cultura da cidade lhes fornecia um subsídio de cinco mil contos (!) para auxiliar ao pagamento dos cachets de músicos estrangeiros. Posso citar alguns, que às Sextas e Sábados, actuavam no mesmo palco que nós, HouseBand (4 Holandeses e 1 Português), nas Quartas, Quintas e Domingos. Músicos como Tete Montoliu, Sun Ra Arkestra, Orsted Pedersen, George Adams/Don Pullen, Frank Wright, Buddy Tate, Andrew Cyrille, entre outros. Em Amsterdão, a associação de músicos de Jazz e Improvisada possui umas instalações, a Bim-Huis, que inclui sala de concertos, bar, sala de exposições, secretaria, além de vários mini-estúdios para aulas e ensaios, e um estúdio de gravação. Uma Casa da Música, só para o Jazz! Que tal? Construída vai para 30 anos... Por cá, nem daqui a 30 teremos algo assim.
É inacreditável que a Câmara de Lisboa ainda não tenha arranjado um novo local para o Hot, de modo a poder caber pelo menos um piano de meia cauda no palco, e um pé direito que permita a um trombonista esticar-se à vontade durante o solo...
Rui Azul

1.6.05

REFLEXÕES ACERCA DO JAZZ (1)


• O prazer ou fruição que experimentamos na audição de um solista é maior:
1 - Se ele demonstrar ser um prolixo executante de escalas, exercícios, malhas, citações, cascatas de bop ou hard-bop licks, a velocidades vertiginosas, dobrando o tempo que a secção rítmica debita, triplicando, quadruplicando (em escassos instantes, é certo), um virtuoso dedilhador
que adora exibir como os seus dedos são aparentados com o speedy gonzalez ou o bip-bip, cometendo proezas (de mau gosto) como tocar parte do Donna Lee, por ex., no meio de uma balada - já vi / ouvi acontecer...
ou
2 - Se nos apercebermos que toca em contenção, escolhendo as alturas para intervir com mais intensidade, intercaladas com momentos mais distensos, usando o silêncio (que também é uma nota) para realçar, ou evidenciar a sucessão do discurso, tal qual faria o mestre Hitchcock para provocar aqueles momentos de suspense, tão essenciais a quem conta uma estória bem contada, fazendo respirações, pausas, ralentis, nos pontos fulcrais ?
• Isto não era um questionário de escolha múltipla, apenas uma figura de retórica que escolhi para abordar este tema. Nunca vos aconteceu ouvir um quarteto tocar de enfiada, como se fossem salvar o pai da forca, quatro ou cinco standards em medium-up tempo, inserindo a malha 47, a 52, a 33 (estas do livro de solos do Coltrane), saltando depois para sequências em ciclo de 4.as (desta vez do Jazz Improvisation do David Baker), prosseguindo alucinantemente para as diminutas, e acabando talvez com o modo lydian (do Lydian Concept by George Russell). E tudo a mata-cavalos, como se o mundo fosse acabar logo a seguir ou tivessem feito uma promessa mística de se penitenciarem a tocar tudo... à bout de soufle! Uff!
Pelo meio, onde ficou a estória? Como descortinar a essência, a personalidade, a originalidade desses músicos, por debaixo da catadupa de exercícios, automatizações digitais (de dedos, não de uns e zeros - you know, bits & bytes... ), mais próximo de um qualquer espectáculo circense ?
O Jazz não é isso. Eles possuem a técnica, mas falta-lhes a alma, a calma, a habilidade de inserir sentimento, vivência, reflexão para serem capazes de contar a sua "estória", ou o seu solo, o seu discurso, de um modo pessoal, diferenciável, de modo a despertarem naqueles que os ouvem a curiosidade da descoberta de algo (que apesar de conhecido - o tema, o swing, a sequência de acordes, etc...) que distingue aquele trompetista, saxofonista, qualquer outro ....ista, dos seus pares.
Numa das últimas edições do Matosinhos em Jazz, no final de um dos concertos, um amigo meu (actor, humorista), disparou-me esta à queima-roupa: « ... Oube lá, parece q'hoje in dia os múzecos de Jazz boum pr'o palco p'ra competir uns c'os outros, p'ra ber quem consegue dar mais nuotas por segundo...». Aquilo deixou-me a pensar, de tão sintomática, ajustada (apesar da cerrada pronúncia tripeira ... propositada, porque ele não fala sempre assim...) foi aquela "boca", ou desabafo. Preferir a técnica em detrimento da estética é borrifar-se para a... ética do Jazz. Ou não?
• O Miles dizia frequentemente para os seus músicos que por vezes são mais importantes as notas que não se dão que as que são tocadas. "Se não tiveres nada de novo ou importante para contar, não toques. E acima de tudo, aprendam a ouvir o silêncio".
O quinteto Miles / Coltrane acabou porque era insuportável para o primeiro ficar entre 7 a 20 minutos à espera que o segundo terminasse o seu solo. Indagado relativamente a isto, John Coltrane retorquiu: « ... I know, man, mas quando estou a solar fico tipo em transe e não sei como parar de tocar...». « .... É muito fácil !» disse Miles - « Basta fazeres isto !...» e ao mesmo tempo exemplificou, imitando o gesto de pura e simplesmente retirar o bocal do saxofone... da boca !
Este episódio verídico antecedeu o fim de um dos mais fabulosos 5tetos que o Jazz já conheceu, tendo recorrido a ele para ilustrar uma das facetas daquilo que abordei, mais atrás.
Rui Azul


live drumming !...

A MÚSICA É A MAIS ETÉREA E A MAIS ABASTARDADA DAS ARTES

textos opinativos acerca do Jazz... e aí vai UM...





A MÚSICA É A MAIS ETÉREA E A MAIS ABASTARDADA DAS ARTES.

Penso-o e afirmo-o.
Etérea, pois dada a sua especificidade perfomática, só a Dança e o Teatro se lhe podem aproximar.
O que é a Música - executada ao vivo - senão umas notas, uns acordes, uns ritmos, uns sons, de tal modo etéreos, impalpáveis, que numa fracção de segundo se dissolvem, dando lugar a outros, tão fugazes como os primeiros, e assim sucessivamente, encadeados no tempo até a peça termine. E a assistência, se a houver, bate com a mão direita repetidas vezes na mão esquerda, que permanece estática (em geral).
Não resisto (e vão-me perdoar os leitores por tal desvio) a contar como surgiu o rital de bater palmas no final de um acto perfomático. Segundo parece, foram os chineses, centenas ou mesmo milhares de anos atrás, que, fartos do ritual que se desenrolava no final de uma peça (discurso, representação ou actuação), que consistia na deslocação, em fila, de cada elemento do público até junto dos actores, músicos, oradores, artistas, para lhes manifestarem o apreço com umas palmadinhas nas costas. É evidente que, quanto maior fosse o número de assistentes ou de artistas, mais tempo esse ritual de apreço demoraria, e em pior estado ficavam as costas dos artistas, especialmente com espectadores mais ... eufóricos. De modo que se sintetizou o processo, passando a mão esquerda a simbolizar as costas do performer, e daí ela esperar que a direita vá ao seu encontro.
Aquelas fracções de tempo em que a Música está a ser executada são únicas, irrepetíveis, tal como a corrente de um rio que passa por baixo de uma ponte é sempre diferente a cada segundo que passa. Na Literatura, nas Artes Plásticas, na Fotografia, no Cinema, na Banda Desenhada, para citar algumas das 9 Artes assim consideradas, os momentos de criação e consequente execução da obra artística têm um carácter mais reservado, intimista, longe dos olhares do grande público. Quando está pronta, anuncia-se com alguma pompa (e circunstância) que se vai desvendar o segredo, ou mais prosaicamente, inaugura-se a exposição, apresenta-se o livro, estreia-se o filme. O autor ali fica, apertando a mão de conhecidos e desconhecidos, a ouvir elogios e baboseiras, enquanto o público contempla o resultado do tempo de exílio ou ermitagem do artista. Resultado esse, ready-made, ou seja, o autor já não pode mudar uma vírgula, acrescentar uma pincelada ou um fotograma mais.
Desilusão para nós, espectadores e cómodo para o autor. Desilude porque não podemos aproximarmo-nos do pintor e perguntar-lhe: -« Foi você que pintou estas telas? Pinte lá um bocadito para nós vermos...». Temos que acreditar que sim, que foi ele. Cómodo para ele porque ninguém tem que saber que quando escreveu determinado capítulo estava na sanita, a fazer o que tinha que fazer; ou ainda aqueleoutro que quando pintou certo quadro andava de cuecas pelo atelier, com uma garrafa de Jack Daniel's quase vazia numa mão e um pincel na outra, a pingar amarelo no dedão do pé direito... É, diríamos que não seria muito dignificante para o prestígio da sua obra em geral e para ele próprio, em particular, a pública exibição desses instantâneos de "pura criação".
Só o Músico, e principalmente o Músico de Jazz, não favorece de tais benesses. Não só mostra perante o público que é ele que está ali a tocar (de preferência sem estar só de cuecas), como cria a sua obra nesse momento, espontaneamente (ninguém traz os solos decorados de casa). É como andar no arame, sem rede. Os actores, esses já sentem a presença da rede, pois já conhecem o papel, as deixas, os diálogos, ensaiaram-nas inúmeras vezes e vão repeti-las, noite após noite, do mesmo modo, ou pelo menos com raras, subtis e imperceptíveis alterações. Um pouco monótono, é certo, mas pelo menos o público vai mudando a cada actuação... No mundo das artes em geral e nas do espectáculo em particular, os Jazzmen são uns verdadeiros cascadeurs*. Não que arrisquem a vida, como aqueles, mas uma noite má ou desinspirada pode trazer futuros dissabores, se houver críticos entre a audiência. Complacência e tolerância são palavras que não existem no seu dicionário.
Bom, dirão vocês, e então os discos?
As gravações? Ainda bem que as há, porque para além de não ser prático e economicamente imcomportável, é impossível ter, em nossa casa, o quarteto do Thelonious Monk a tocar para nós à hora que nos der na real gana. Mas o Jazz, por essência intrínseca, quer-se ao vivo. Alive and well.
Quando não há, temos os registos, audio e/ou video para matar saudades.
Abastardada porquê?
Imaginem locais públicos - centros comerciais, feiras, esplanadas, cafés - não está sempre uma música qualquer a debitar de uns quaisquer altifalantes? Na praia - não aparece sempre o chato com o "tijolo cantante" a berrar uma qualquer modinha irritante? Na televisão - cada anúncio tem, inexoravelmente, o seu tema - o tema do produto em questão - que, para assistirmos ao noticiário e a um filme, somos obrigados a gramar umas dezenas de vezes, e só nessa noite!
Por acaso nesses locais, nessas situações, são obrigados a presenciar qualquer das outras formas de arte? Teatro na praia? Literatura na hora da bica? Pintura na feira de Valença? Não, só nos impingem música ... e o que é pior, música má, bera, irritante, boçal, para acéfalos ou retardados mentais. Depois não admira que as pessoas tenham perdido o sentido do gosto, o sentido estético da música de qualidade. E a que não a tem, ... é aquela que mais vende. Mais abastardada, sim.
* cascadeurs - misto de duplos de cinema e de saltimbancos, que conduzem motos e viaturas em exibições espectacularmente acrobáticas e arriscadas
Rui Azul